O velório transcorria normalmente. Ou seja, a viúva com a cabeça abaixada, um lenço à boca e por vezes nos olhos. O caixão no meio com o falecido todo "enternado" e engravatado. Do outro lado algum amigo mais próximo fazia o sinal da cruz e mexia os lábios como a rezar. A sala tinha o cheiro característico das flores, daqueles que nunca nos esquecemos e fica durante dias na casa do morto.
Lá havia grupos de parentes, amigos, vizinhos e até de curiosos que se movimentavam de lado a lado. Fosse para um café com bolacha maria ou bater uma birita já que ninguém é de ferro, o deslocamento se dava sempre entre a sala do morto, a cozinha e o jardim em frente à casa. Uns falavam de que era bom, outros comentavam as artes que fazia e outros contavam piadas. Risos abafados por vezes se ouvia e de vez em quando um chôro menos contido, na chegada de mais um ou uma amiga. Lá iam alguns ver o comportamento do recém chegado, talvez na esperança de que um fuzuê se iniciasse. Vai que a donzela recém chegada fosse uma outra viúva do mesmo falecido! Que nada! Nada disto aconteceu e a noite já estava quase partindo em busca do novo dia quando chega o Osvardo. Era assim que o chamavam. Se aproximou da viúva, abraçou, beijou na testa e segredou algo que se imaginou ser os pêsames. Virou-se em direção ao caixão, colocou sua mão sobre as mãos do morto, ainda amarradas por uma atadura de crepe e se pôs a chorar. Passados os minutos de uma eternidade de choro, se aproximou do rosto como que para beijá-lo, parou subitamente e disse em alta voz: Mas este aqui não é o Jardel. Nem aqui nem na China! Viúva em pé, corre-corre de convivas em torno do caixão. Como não? pergunta a Madalena, amiga da família. Ele estava doente "dos fígado" e por isso está com esta cor estranha! A viúva tenta por ordem e diz que ela é quem foi ao IML reconhecer o cadáver. Ele tinha saído de casa no final de semana, como de costume, ficara fora vários dias e tinha sido encontrado morto na rua. Fora levado ao IML para necrópsia. Localizados os familiares a viúva fizera a identificação e lá estava o Jardel sendo velado. Como então o Osvardo estava questionando a identidade do morto? Quando a cena estava quase por acabar, chega uma viatura do IML para informar que o morto que ali estava na verdade era de outra família e que o desta casa era um homem branco. Esclarecido que tinha ocorrido uma troca de cadáveres, entre um branco e um afro-descendente, a viúva foi então questionada. Como poderia ela ter reconhecido o marido morto, se agora se percebera que o dela seria branco e não pardo. Aí vem a surpresa. Ela esclareceu: Quando eu estava lá no necrotério o rapaz me mostrou vários cadáveres que estavam sem identificação e quase morta de medo, reconheci o Jardel pelo pé de meia que o defunto usava.
Esclareço - Naquela época o IML ainda não fazia confrontação imediata das impressões digitais de todos os mortos com as respectivas carteiras de identidade, para só então liberar os corpos. Algumas vezes a identificação era feita somente pelos familiares.