Um dos peludos

Um dos peludos
Faraó

sábado, 13 de março de 2010

quase morta... de susto (in memoriam)

Como médicos residentes, era comum trabalharmos até altas horas da noite para vencer o serviço. Ninguém atrapalha a concentração e o trabalho rende. Naquela época, no HC-UFPr. não tínhamos auxiliares de necrópsias em plantão noturno e isto obrigava aos enfermeiros de qualquer das clínincas, a deixarem os cadáveres no pequeno corredor de acesso ao Serviço de Patologia, local ermo, escuro e sem trânsito. Lá ficavam os corpos até a manhã seguinte, quando então eram colocados na sala de autópsias e em seguida examinados. Como trabalhávamos até tarde da noite, ao descer para a ceia no refeitório era hábito olharmos quantos cadáveres estavam no corredor e de onde vinham; assim nos preparávamos emocionalmente para a escala de necrópsias, já que era em forma de rodízio. Uma noite após o lanche a colega resolveu voltar à sua mesa e lá permaneceu até quase duas horas da madrugada. Tinha sido um dia de muitas reuniões e o serviço se acumulara. Venceu-a o cansaço e então foi apagando luzes, fechando portas, desceu a escada já no escuro e caminhou como sempre fazia; há anos era sua rotina e conhecia cada palmo de chão daquele labirinto isolado do corpo principal do hospital. Nas noites, por lá ninguém circulava pois era da "Patologia"  e ninguém queria encontrar algum finado perambulando. Era quase um beco. Enquanto caminhava ia pensando nas biópsias que teria que descrever, citologias para ver, artigos ainda por ler antes das reuniões, laudos, fotos etc. Dobrou à esquerda, à direita, novamente à esquerda e direita e, na penumbra lá estavam três macas com cadáveres. Cobertos por lençóis e certamente cada um com sua etiqueta de identificação no braço, mostrando o seu nome e a clínica de onde vieram. Eram da neurocirurgia, clínica médica, clínica cirúrgica ou qualqer outra. De avental de brim branco, longo e de mangas longas com amplos bolsos, lá descia ela com uma bolsa no ombro direito. Havia discreta luminosidade vinda do corredor da emergência e que insistia em passar pelas frestas da grande porta, tipo bar de faroeste (duas folhas vai-e-vém). Se aproximou da primeira maca, tirou a mão esquerda do bolso, levantou a ponta do primeiro lençol. Descobriu o rosto, homem magro, cabeça raspada e com curativo; virou o braço e na etiqueta .... neurocirurgia. Certamente seria autopsiado, era protocolo da clínica. Quatro passos, levantou o segundo lençol.  Mulher, idosa e obesa, na etiqueta ... clínica médica. Talvez infarto e quem sabe seria entregue à família sem autópsia. Três passos a mais, ajeitou a bolsa que do ombro havia descido, levantou a ponta do cobertor, puxou o braço do falecido para ver a etiqueta e.... a maca se agita, o cobertor se eleva, um grito de mulher, uma bolsa arremessada ao chão e o cadáver ainda coberto pelo pano escuro, levanta e diz com voz grossa - opa ! que é isso; O desespero toma conta dela, as pernas tremem, mas não param de correr conduzindo seu volumoso corpo pelo escuro corredor da emergência.... e o cadáver atrás, apressado e já sem o cobertor. A primeira parte do corredor era da pediatria, depois o de adultos. Assustados pelos gritos, acendem-se as luzes e os plantonistas saem para ver o que se passa. Todos a ouviam mas ninguém a entendia pois estava lívida tanto quanto o avental e com o terror estampado na face. O tal cadáver havia parado em frente à pediatria. Ouviram então  - como está meu filho?  Pobre homem, cansado e agora apavorado; o fato - enquanto seu filho ficara sendo hidratado na emergência da pediatria, ele tomou emprestado um cobertor e se deitou na primeira maca que encontrara naquele escuro corredor. Mal sabia ele que dormiria ao lado de dois cadáveres e, que alguém o acordaria na madrugada, puxando seu braço,  assustando e o fazendo pular da maca ainda enrolado no cobertor. Imediatamente pensou que algo de ruim teria acontecido com seu filho. Correu para saber notícias e não entendeu nada do que acontecia no corredor. A doutora., caso não tivesse sofrido acidente muitos anos depois desta cena e, se ainda estivesse entre nós, poderia nos relatar o que sentiu naquela última madrugada de trabalho, já que nunca mais ficou até tão tarde. Certamente teve aquela sensação dos pelos querendo sair dos poros e um arrepio gelado percorrendo a espinha da cabeça aos pés, que nos deixa feito menir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário