Um dos peludos

Um dos peludos
Faraó

segunda-feira, 8 de março de 2010

amigos são para estas coisas

Conhecido não, amigo. Ele era representante de laboratório de produtos farmacêuticos. Trabalhávamos no HC-UFPr. Ele representando e eu também ... no papel de professor. Éramos amigos. Somos amigos, mesmo que o tempo e a distância nos tenha afastado. Entrou na minha sala e disse: Preciso de um favor teu. Como posso ajudar, de pronto respondi; até porque não era ele homem de pedir favores. Meu pai faleceu e está sendo velado no Cemitério Municipal. Imaginei que precisava de intercessão junto a alguma funerária - algumas delas atendiam os funerais no HC e quem sabe baixassem o preço, se eu conversasse. Para surpresa ele pediu que eu fosse até o local do velório. Como assim meu amigo? Com todo respeito, fico triste por você mas não conheci seu pai. Te conto... falou ele num tom meio que de receio, um misto de vergonha e medo: meu velho pai há anos me disse que tinha medo de ser enterrado vivo e me pediu para que eu não permitisse esta situação. Como a morte foi súbita, sabe como é, estou preocupado. Onde eu entro nesta questionei ainda sem perceber como ajudá-lo. Quer que façamos necrópsia? Basta trazê-lo (não quiz dizer cadáver, afinal era o pai dele.) e em pouco tempo tudo estará resolvido. Não, não, há muita gente na sala e minha mãe não vai aceitar. Até porque ele ainda está quente. Eu gostaria que você fosse comigo até lá e fizesse algum exame que pudesse comprovar a morte. Quem sabe cortar os pulsos, auscultar o coração, colocar espelhinho na frente da boca (me contorci para não rir pois lembrei daqueles redondos com imagens da Nossa Senhora Aparecida ou de mulher nua vendidos em lojas de bijuterias). Pedido de amigo aflito é ordem e lá fomos nós. Fomos os três. Eu, de roupa branca, o órfão de pai e minha maleta de médico. Ao chegar no recinto, as pessoas se afastavam tal como as águas do Mar Vermelho frente ao comando de Moisés a caminho da Terra Prometida. E nós caminhando em direção ao finado. O cheiro de velas, flores e perfumes variados preenchendo todos os recantos das narinas. Na cabeceira, a idosa com véu preto sobre a cabeça e rosário na mão esquerda , junto às duas alianças e que me era apresentada como... mamãe. Não estava de óculos escuro pois não eram ricos. Depois do beijo e o tal - aceite meus pêsames - disse a ela sobre a solicitação do filho, que com voz embargada foi reiterada por ela. Tudo se fazia para atender ao desejo do que já partira. Peça aos presentes que se retirem por alguns momentos para que possamos fazer o exame, disse eu, não sem usar da autoridade de perito. Foram saindo e olhando para trás, quem sabe procurando ver espirrar sangue ou um grito do ressuscitado. Fecharam as portas. Enquanto o dileto filho retirava as centenas de cravo de defunto (flor amarela e com cheiro forte) que recobriam o corpo, deixando de fora somente as pontas dos pés com meia de seda preta, eu toquei as mãos e a cabeça notando a baixa temperatura e a palidez, indicativas de morte há algumas horas. Pressionei os globos oculares, que nitidamente já não tinham mais a consistência dos vivos, pois a falta de irrigação sanguínea os deixa com baixa pressão. (pressione delicadamente os seus e se estiverem firmes, é sinal que estás vivo caro leitor). Abrindo-os notei que as córneas já não tinham mais brilho, aquele do qual provavelmente a viúva sentiria falta. Outro sinal de morte já presente. Já sem as flores, o terno preto do tipo risca de giz, de provável compra na Casa Globo deixava ver que tinha compleição atlética. Grande e robusto, suficiente para que os amigos cansassem para carregá-lo até a última morada. As mãos cruzadas sobre o peito, alvas e ainda presas com um lenço listrado em bordeaux, Presidente, que nunca fora utilizado pois tinha vincos bem marcados. Fiz muita força para tentar mover os braços e depois dobrar os joelhos. Tudo em vão. Estavam endurecidos há longo tempo. O que chamamos de rigor mortis - endurecimento da morte estava ali para garantir que do pai do amigo só restariam lembranças. Não cortei nada, ninguém gritou (o que foi bom!) e no retorno dos familiares e amigos, antes mesmo da viúva que havia aproveitado para descansar da noite mal dormida, os olhares se entrecruzavam tranquilizadores de que agora o definitivamente defunto poderia ir para sua tumba. Não acompanhei o féretro, só por garantia, para não correr o risco de vê-lo levantar-se do caixão na hora da despedida, já na boca da sepultura. Saí meio de fininho, eu e minha maleta, que nem fora aberta. Amigos são para estas e... outras histórias.

2 comentários: